Mais de 20 mil pessoas torturadas, 434 mortos ou desaparecidos e 4.841 representantes eleitos pelo povo destituídos de seus cargos. Segundo o instituto HumanRightsWatch (HRW), que pesquisa diversas pautas a respeito dos direitos humanos mundo afora, estes são alguns dos lamentáveis dados da Ditadura Militar (1964-1985) no Brasil.
Apesar disso, há quem exalte o período, como o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que determinou o reestabelecimento das comemorações do golpe de 1964, suspensas, em 2011, pela então presidente Dilma Rousseff (PT), vítima de tortura durante o governo militar. Há também aqueles que simplesmente não se lembram das violências cometidas pelo Exército, neste período, como é o caso de parte da população de Barra Mansa.
O espaço, hoje conhecido como Parque da Cidade, abrigou, durante a década de 1970, a partir da adoção do Ato Institucional Nº5, que derrubou direitos e garantiu plenos poderes de censura aos militares, o principal palco de repressão e violação dos direitos humanos na região Sul Fluminense e, talvez, do estado do Rio: o 1º Batalhão de Infantaria Blindada (1º BIB). Nos porões desta repartição militar, construída em 1950, no percurso entre a Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em Resende, e a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda, diversas pessoas foram torturadas, entre operários, que automaticamente eram desligados da empresa, ativistas da igreja católica, dirigentes sindicais, artistas locais e militantes comunistas.
Entretanto, mesmo com o terrível histórico do local, a Prefeitura de Barra Mansa pretende transformar o Parque da Cidade, atualmente um espaço pouco utilizado, numa área de lazer completa, até mesmo com pista de kart. A informação foi divulgada pela colunista do jornal Extra, Berenice Seara, que relatou que o eventual projeto já havia sido apresentado a autoridades estaduais.
A possível obra viola um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) assinado, em 2016, entre a Prefeitura e o Ministério Público Federal (MPF). No documento, o Poder Executivo, então comandado por Jonas Marins (PCdoB), se comprometeu a implantar um centro de referência permanente do direito à memória, algo completamente oposto a um espaço de lazer com pista de kart e teleférico.
Acionada, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, por meio do Núcleo Volta Redonda, enviou um ofício à administração municipal, solicitando esclarecimentos, como “a apresentação do Projeto informado na imprensa, que conforme consta, já foi entregue às Autoridades Estaduais; Qual o valor previsto e o planejamento para a execução da obra; Qual o amparo jurídico para execução do Projeto, mesmo após constituição do TAC com o Ministério Público Federal ou se houve revogação/cancelamento do instrumento”. A prefeitura tem até cinco dias para responder aos questionamentos.
No requerimento, expedido na última segunda-feira (dia 9), o defensor público João Helvécio de Carvalho, considera que o “Projeto da área de lazer, composto por pista de skate, kart, restaurante e teleférico, não se coaduna com a importância histórica do espaço, que deve ter sua memória preservada, como faceta do direito transicional”. Além disso, o defensor alerta que “conforme disposto no TAC, é vedada a construção de empreendimentos privados e públicos que não tenham por finalidade a preservação da memória sobre a violação dos direitos humanos”.
Em contato com a Folha do Aço, o defensor João Helvécio afirmou que a Prefeitura de Barra Mansa não havia enviado as respostas solicitadas. No entanto, por meio de sua assessoria de comunicação, o governo municipal informou à reportagem que o acordo será cumprido de forma integral e que a área destinada à preservação da memória já está disponível ao grupo gestor do acordo desde 2017.
“O TAC diz respeito a um crime, em que houve julgamento, condenação e cumprimento de pena. O crime foi cometido por militares, dentro de uma unidade militar, de competência da segurança nacional, do governo federal, sem qualquer envolvimento do município. A Prefeitura apenas comprou uma área, e virou a responsável por fazer a preservação da memória de um fato criminoso e vergonhoso, mas do qual não foi parte. A área de interesse direto na preservação da memória das alegadas violações dos direitos humanos, está disponível para o Grupo Gestor do TAC desde 2017”, diz a nota da Prefeitura de Barra Mansa.
“Desde então foram realizadas algumas eventuais atividades culturais com o acompanhamento da Fundação Cultura Barra Mansa, mas ainda não houve ocupação permanente ou regular na área, especialmente na edificação do “Arquivo”. A referida área está sendo chamada de Praça da Memória com cerca de 8.500 metros quadrados exclusivamente para a construção do Centro de Memória, Verdade e Direitos Humanos”, prosseguiu.
O TAC
Firmado em novembro de 2016 entre a prefeitura de Barra Mansa e o Ministério Público Federal, o TAC visava assegurar reparações simbólicas em favor da preservação da memória e do patrimônio nacional existente no local. Segundo uma das cláusulas do documento, o Município deveria adotar um dos pavilhões do antigo quartel do acervo histórico sobre o período ditatorial, a ser exposto ao público de forma interativa.
Além disso, o MPF determinou que, para fins de proteção ao local, “deveriam ser realizadas intervenções que incentivassem a utilização do espaço para a prática de esportes, apresentações culturais, palestras, cursos e visitas públicas”. Contudo, a utilização do quartel e de suas adjacências para a construção de empreendimentos privados e públicos que não tenham relação com a finalidade do TAC foi proibida pelo MPF, que também vedou a destruição de qualquer das unidades onde funcionaram as repartições do quartel.
Desta maneira, de acordo com o documento de novembro de 2016, o Parque da Cidade, criado com a finalidade de abrigar eventos de lazer e de entretenimento, deixaria de existir, dando lugar para um espaço cultural e de importância histórica. Passados quase cinco anos da assinatura do termo, o projeto pouco andou e, pelo que parece, não é exatamente uma das prioridades para o antigo espaço do 1º BIB.